Torto arado

Todo mundo leu e falou desse livro. Apenas li agora, mas deixo minha impressão também :D.

Torto arado é um mergulho sensível no mundo de servidão e violência que sufoca os herdeiros da escravidão. É sobre as permanências, sobre o peso e a tradição violenta que rege o Brasil rural. Um mundo que resiste, que se transforma à luz das rápidas transformações do século XX mas também conserva. Um mundo que se pudéssemos omitir inovações como energia elétrica e motos, poderia, numa primeira mirada, ser difícil de distinguir o século.

É um mergulho ficcional, deve-se dizer, mas extremamente realista. É sobre o controle sofregamente mantido por uma classe proprietária sobre uma população despossuída e marginalizada. Impossível não lembrar de sua contrapartida urbana (e verídica): o diário de Carolina Maria de Jesus de (Quarto de despejo: diário de uma favelada).

É também um livro sobre raízes e cultura popular dos herdeiros da escravidão. Evoca o orgulho tanto daqueles que eram os reservatórios dessas tradições — como Zeca Chapéu Grande — como daqueles que mesclavam sua experiência e sabedorias tradicionais com os ventos da esquerda que varriam o Brasil no final da Ditadura e início da Nova República — como Bibiana e Severo.

O realismo do livro “choca-se” com o mágico da cultura popular dos herdeiros da escravidão. Não no sentido de negá-lo, mas, sim, pelo contrário, de incorporá-lo. É um livro de realismo mágico. Aqui, o sobrenatural é tido como real. Os encantados do Jarê, tidos como reais pelos personagens, ganham sua existência inconteste na terceira parte do livro, na qual o narrador passa a ser um dos encantados: Santa Rita Pescadeira.

A narração, a propósito, é um destaque a parte. A história é sobre o drama de uma família negra no meio rural, é sobre gerações, é sobre cada uma das famílias que vivem o mesmo destino na Fazenda Água Negra e incontáveis outras. Para tanto, o romance é divido em três partes, cada um portando uma voz. Na primeira, quem narra os eventos é a irmã Bibiana, a segunda é narrada pela irmã Belonísia, e, por último, temos o retrato fantástico de Santa Rita Pescadeira.

Chama a atenção o recurso do autor para enfocar as permanências. Itamar Vieira Junior optou por evitar dar claramente o período em que ocorre a história do livro. A ideia é que o leitor tenha que perscrutar, sondar, tentar montar um quadro. Sem esse esforço, temos a impressão que a história ocorreu em um momento indefinido na história do Brasil. Tamanha as permanências.

Falando de um ponto de vista mais “pessoal”, é uma trama e uma narrativa que prendem imediatamente. O sentido de uma história que atravessa gerações mas ainda assim tem a impressão íntima de cada uma das vozes que a narra é surpreendente. O autor apresenta de cara o segredo que atravessa o livro: a faca de Donana e sua história (e maldição) que corta gerações de sua família. A faca atravessa a história da própria Donana, de Carmelita (sua filha), e das netas Bibiana e Belonísia (e, consequentemente, dos pais Zeca e Salu). O segredo, contudo, resiste a se encerrar. Se mantendo opaco ao leitor e aos personagens. Ao final, os personagens marcados pelo objeto, guardam para si sua parte dessa trama e apenas o leitor a compreende no todo.